Spoiler: não. E ainda pode ser uma das melhores armas para que cada vez mais pessoas saibam distinguir ciências de pseudociências e charlatanismo.
Pode parecer besteira, mas para começar essa discussão precisamos partir de um pressuposto: o de que existe uma realidade objetiva e de que estamos todos inseridos nela. (ok, dois pressupostos…)
Digo isso porque vamos trabalhar com a simplificação de algumas definições originalmente complexas ao longo do texto, alguns termos sobre os quais existe muita confusão, então é bom que a gente comece do mesmo ponto de partida.
O que é ciência e a quem ela pertence?
Se você parar um(a) transeunte na rua e perguntar “O que é a ciência?”, é bem capaz que a pessoa tenha dificuldade em responder, ou dê uma resposta estereotípica como “é o que fazem dentro dos laboratórios” (o que não estaria de todo incorreto, por sinal). Se você parar um aluno dentro de uma universidade e fizer a mesma pergunta, a pessoa provavelmente hesitará ainda mais para formular uma resposta (afinal, teoricamente, ela deveria saber mas não é tão fácil sintetizar). E se perguntar a um professor universitário, ele VAI te dar uma resposta, que pode ser ou uma palestra de 10 minutos cheia de palavras rebuscadas ou uma memorização da definição do dicionário. Você, inclusive, deve ter parado pra pensar em como poderia responder brevemente a esta pergunta, que parece simples mas é tão conceitualmente complexa…
Depois de repetir esse questionamento diversas vezes em diversos contextos diferentes, entre cientistas ou leigos, a definição que eu passei a usar, por considerar a mais simples, útil e íntegra ao mesmo tempo, é a de que “Ciência é tudo que a humanidade sabe sobre a nossa realidade objetiva, depois de fazer perguntas e testar ostensivamente todas as possíveis respostas.” A maneira mais pragmática, não enviesada, orientada à realidade objetiva dos fatos e acurada possível de testar essas respostas - que chamamos de “hipóteses” - é o que denominamos como Método Científico. Ou seja, ciência é todo conhecimento sobre a realidade (na qual todos os seres humanos estão inseridos) obtido através do método científico.
Agora vamos mudar a pergunta: a quem pertence a ciência? Quem pode se aproximar dela? Quem pode fazê-la? Quem pode ser um interessado ou interessada?
Ora, se a ciência é tudo que se sabe sobre a realidade e se todo mundo está inserido nessa realidade, nada mais natural do que todo mundo se interessar! Sempre houve o questionamento sobre a origem de fenômenos naturais como a chuva, por exemplo. Diversos relatos de distintas civilizações primitivas a atribuíam a uma vontade divina, mas o método científico foi capaz de descrever, com cada vez maior riqueza de detalhes ao longo dos anos, o que conhecemos e estudamos hoje como o Ciclo Biogeoquímico da Água. Todos queremos respostas que expliquem a nossa existência, e a ciência já tem muitas das mais certeiras delas! Mas nem sempre a resposta mais certeira, será a melhor resposta para alguém. Muito menos a mais fácil de entender/aceitar, ou a melhor comunicada. Por isso, tantas pessoas acreditam (ou porque preferem ou porque é só o que lhes foi apresentado) em respostas que já se mostraram incorretas para certas perguntas. Ou pior ainda, acreditam em mentiras, deliberadamente inventadas (normalmente para fins de ganho pessoal ou de um seleto grupo) a partir de fragmentos das respostas verdadeiras.
Sem medo de ser considerada “polêmica” trago o primeiro exemplo: a homeopatia. Ela surgiu no começo do século XIX, partindo de duas suposições (levantadas, possivelmente, com a melhor das intenções diga-se de passagem). A primeira era de que “semelhantes curam semelhantes”, ou seja, que a cura de um sintoma seria algo que provocasse este sintoma, como por exemplo uma rinite alérgica, que faz os olhos lacrimejarem, poderia ser tratada com pequenas quantidades de cebola. Aliás, a segunda suposição é de que bastaria essa ~substância semelhante ao sintoma~ ser diluída centenas de vezes em água, álcool ou açúcar. A diluição mais comum é a chamada C30, o que significa que a substância ativa foi diluída 30 vezes na proporção de 100 para 1. Pense nisso em contraste com os tratamentos da época, que eram a sangria e os laxantes… Com certeza a homeopatia seria menos deletéria, e talvez por isso tenha sido considerada um “sucesso”… No entanto, em todos os testes com rigor científico a que foi submetida de lá pra cá, ela sempre apresentou o mesmo efeito que água pura - dada sem que os pacientes soubessem a diferença - o que chamamos de “efeito placebo”.
“Para conter uma única molécula de substância ativa, a pílula homeopática nessa diluição teria que ter o diâmetro equivalente à distância entre o Sol e a Terra [149,6 milhões de quilômetros]”
É o que diz Edzard Ernst, professor emérito da Universidade de Exeter, na Inglaterra; vencedor do Prêmio John Maddox em 2015 “pela coragem de defender a ciência”; e considerado “o maior especialista do mundo em evidências (ou falta delas) a respeito de terapias alternativas”. “Ou seja: os remédios homeopáticos mais comuns não contêm uma única molécula de princípio ativo", diz ele.

Mesmo assim, a homeopatia ainda é considerada uma especialidade médica e faz muitos pacientes - ou ainda Estados com sistemas subsidiados de saúde - gastarem dinheiro e arriscarem vidas apostando em um tratamento cujo efeito farmacológico é nulo, enquanto poucas pessoas lucram com isso. Nos EUA foi determinado em 2016 que todos os frascos de homeopatia alertassem no rótulo que aquele produto não possui evidência científica de que funciona, e no ano passado a França parou de subsidiar tratamentos homeopáticos. Já na Suíça houveram períodos de testes com duração de anos e a homeopatia nunca atendeu aos critérios de eficácia e custo-efetividade, tendo os subsídios interrompidos mas posteriormente reconsiderados, por resultado de referendos populares a favor de mais períodos de teste. Mesmo que hoje, após comprovar diversas vezes sua ineficácia, existam lugares onde essa prática secular é apenas tolerada, percebemos que em sociedades humanas o racional é indissociável do cultural e do simbólico.
Sugestão de leitura complementar: More Harm Than Good? The Moral Maze of Complementary and Alternative Medicine
Livro por Edzard Ernst
E é justamente dentro deste tema que vem o segundo exemplo: o misticismo quântico. Tudo começou quando, em 1975, o doutor em física pela conceituada Universidade de Viena (onde provavelmente já frequentava um jovem Edzard Ernst, por sinal), Fritjof Capra publicou o livro “O Tao da Física” onde improcedentemente traça paralelos entre a então recente e badalada Física Moderna, ou Física Quântica, e o Misticismo Oriental - que também estava na moda na época, tendo elementos apropriados incorporados em obras de grandes referências populares ocidentais como Os Beatles e pelo movimento New Age - como se ambos fossem complementares para a compreensão do funcionamento natural do universo. O livro teve grande repercussão e acabou popularizando as visões místicas de físicos adeptos da Nova Era (grupo batizado de “Fundamental Fysiks Group”, ou "Grupo de 'Fysika' Fundamental" é sério não é meme) com relação à física quântica entre o grande público não-científico.
Um pouco mais tarde, em 1990, a física Danah Zohar, cujo currículo inclui formações em instituições renomadas como Harvard e MIT, publica a primeira edição de “O ser quântico”. Neste livro ela transforma o discurso científico da mecânica quântica em um discurso motivacional basicamente de autoajuda, correlacionando as estruturas conceituais reais desse campo de estudo com as relações pessoais e interpessoais de cada indivíduo.

Some os aspectos socioculturais e simbólicos inerentes já mencionados, com o fato de que essas obras são contemporâneas aos primeiros resultados experimentais desse campo da física, além de os autores serem contemporâneos a nós. Eles estão vivos, alcançaram fama e prosperidade (somente esses dois títulos possuem a soma de cerca de 50 edições publicadas), e seguem influenciando diversas pessoas tanto de fora da comunidade acadêmica quanto de dentro - que, inclusive, acabam usando da própria formação como título de autoridade para se tornarem também autores e validarem suas próprias abstrações.
Tudo isso explica o atual fenômeno de ampla disseminação de crenças pseudocientíficas e práticas charlatãs (extremamente sedutoras; persuasivas; e bem comunicadas apesar de balela, a propósito) associadas errônea e inveridicamente com o termo “quântico” e/ou com os fundamentos teóricos da mecânica quântica (que por sua vez REALMENTE vem nos ajudando a compreender cada vez melhor o nosso universo e a nossa realidade).
Sugestão de leitura complementar: A APROPRIAÇÃO DO TERMO QUÂNTICO: DE QUE FORMA A FÍSICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA É DIVULGADA POR OUTRAS ÁREAS DO CONHECIMENTO
Dissertação de mestrado de Thiago Tavares da Costa
Estes exemplos nos mostram que as pessoas sempre estiveram e sempre estarão interessadas em respostas e soluções para as demandas do seu próprio entorno. Elas só não foram ensinadas ou acostumadas a se orientar pelo compromisso com a verdade e a realidade objetiva dos fatos na busca por estas respostas e soluções. O que, aliás, realmente é um movimento contra-intuitivo. Caso não haja um esforço ativo e consciente, é involuntário seguir os próprios vieses de confirmação (ou seja, acreditar na explicação que confirma/reforça uma crença pré-existente).
Tá, mas e o Biohacking?
Ao contrário das alusões anteriores, não é todo mundo que vai ter uma crença pré-existente específica para os termos “Biohacking” ou “Biohacker”, porque eles não são tão conhecidos assim. Porém, não seria de admirar que, à primeira vista, fosse associado a uma coisa ruim, afinal tem alguma coisa a ver com “hacker” e “hacker” é ruim… Certo?
Errado. “Hackear” não significa burlar; invadir ou quebrar um sistema de segurança, isso se chama “crackear” (do inglês “to crack”, e quem faz isso são “crackers”). Hackear significa acessar ou tornar acessível, e os primeiros hackers foram os estudantes de computação da década de 60 que tiveram acesso à essa fronteira do conhecimento e perceberam que não seria possível avançar efetivamente com todas as possibilidades deste recurso se ele ficasse restrito aos limites das mais privilegiadas universidades norte-americanas. Eles conceberam a visão de uma extensa lógica de partilhamento; colaboração; e descentralização, para que todos os interessados pudessem contribuir com os códigos abertos, e ainda redigiram um código de ética cujos mandamentos pudessem nortear as atividades para todo o seu potencial positivo de transformação do mundo.
O sexto mandamento da ética hacker declara:
“computadores podem e devem tornar a vida melhor.”
E, segundo o autor Steven Levy, os hackers achavam que os computadores haviam enriquecido suas vidas; dado foco a elas; e as tornado “vidas aventureiras”, por isso consideravam os computadores como as “lâmpadas de Aladim” que eles podiam controlar. Eles acreditavam que todos na sociedade poderiam se beneficiar de experimentar tal poder e que, se todos pudessem interagir com computadores da maneira que os hackers faziam, então a ética hacker poderia se espalhar pela sociedade e a tecnologia seria capaz de tornar o mundo um lugar melhor.
Não por acaso, como aconteceu com o nome de praticamente todos os movimentos populares subversivos de empoderamento de massas no mundo, o termo “hacker” foi copiosamente difamado pela mídia mainstream até que o imaginário comum fosse dominado pela associação com uma coisa ruim.
Sugestão de leitura complementar: Hackers: Heroes of the Computer Revolution
Livro de Steven Levy
Feitas todas as pontuações até agora, você não terá dificuldade em compreender que o Science Hacking é a união do método científico com a ética hacker - dentro da lógica “maker”, que você pode conhecer como “faça você mesmo” ou “do it yourself”/DIY - ou seja, é a democratização do acesso ao fazer científico (popularmente conhecido como “Ciência de Garagem” ou ainda “Ciência Cidadã”).
O Biohacking é um braço do Science Hacking voltado para as Ciências da Vida, que por sua vez tem como alicerces inerentes os princípios de Bioética e Biossegurança, especialmente a vertente DIYBio. Em outras palavras, Biohacker é a pessoa que se propõe a explorar; pesquisar; e experimentar na grande área das Ciências da Vida fora do ambiente acadêmico (em “garagens” dentro de casa ou espaços de prototipação como makerspaces e hackerspaces), obrigatoriamente respeitando os preceitos do método científico; da ética hacker; da bioética e da biossegurança. Biohacking não é bagunça.
Quem ousar manipular os conhecimentos e/ou aplicações da Biologia de forma irresponsável, danosa ou hostil não pode ser considerado “Biohacker” porque o aspecto ético é indissociável do movimento. A estes podem ser recomendados outros termos, como “Charlatões” ou até “Bioterroristas” (lembrando que estes casos não são exclusividade do ambiente extra-acadêmico, aliás).
Sugestão de leitura complementar: “Security Implications of Synthetic Biology and Nanobiotechnology – A Risk and Response Assessment of Advances in Biotechnology”
Estudo da ONU que concluiu que novas tecnologias relacionadas à biotecnologia, têm mais potencialidades positivas do que negativas, e que as comunidades DIY Bio são na verdade mais inofensivas do que os grandes centros de pesquisa, uma vez que possuem menos infraestrutura e acesso a patógenos.
E depois de toda esta explanação, como último recurso para proteger seus vieses inconscientes, normalmente é o momento das argumentações sobre a “fluidez” da linguagem. (pausa para o meme do Bonner “vamos respirar? vamos respirar.”)

Vindas principalmente de acadêmicos que são contra a democratização do fazer científico fora das universidades (ambientes historicamente elitistas onde, infelizmente, a avassaladora maioria de pessoas vindas da classe trabalhadora não tem condições de prosperar), não faltam alegações como a de que “a língua é um organismo vivo, e é modificada pelos seus falantes a todo o tempo, bem como influenciada pela cultura” e “na cultura da picaretagem, e dentro da área de saúde, os termos ‘Biohacker’ e ‘Neurohacker’ tem sido sim usados no contexto pseudocientífico”. Portanto, “a pessoa que se denomina ‘Biohacker’ já perde meu respeito na hora”. (citações reais replicadas quase que integralmente)
Bem, da mesma forma que seria absurdo exigir que físicos parassem de usar o termo 'quântico' só por causa da apropriação linguística de charlatões, biohackers comprometidos com o método científico e com a ética hacker não podem ser deslegitimados e estigmatizados por conta da desinformação (que aliás esse tipo de fala ajuda a promover).
E afinal, como o Biohacking pode combater a disseminação de pseudociências e práticas charlatãs?

Indo além, se todos os interessados por respostas e soluções relacionadas às questões da vida tivessem acesso ao Biohacking com todo seu apelo ético, e sentissem o gostinho do fazer científico através do método científico, seria muito mais difícil cativá-los com discursos pseudocientíficos.
A própria divulgação científica é maravilhosa no sentido de traduzir e levar os resultados publicados em periódicos científicos de uma linguagem técnica para uma linguagem mais palatável ao grande público. Mas ela só vai até o meio do caminho, e ainda é tão passiva e distante do cidadão comum que ele não tem nem como perceber a diferença entre divulgadores científicos sérios de figuras que simulam autoridade e usam raciocínios pseudocientíficos aparentemente lógicos para comunicar inverdades.
Deste modo, a popularização da prática de um fazer científico rigoroso e ativo - que começa justamente com aprender a fazer pesquisas bibliográficas e conferir a credibilidade das informações disponíveis, e perpassa pelos limites do que é possível ou não afirmar de um ponto de vista metodológico - poderia acabar sendo uma das mais eficazes vacinas contra a desinformação.
Sugestão de vídeo: Ellen Jorgensen: Biohacking -- you can do it, too
Ellen Jorgensen, bióloga molecular, fala sobre como a Biotecnologia é potencialmente o setor tecnológico mais poderoso e que mais vem crescendo no mundo, como ela pode solucionar grandes problemas e ainda influenciar em todos os aspectos da nossa vida cotidiana.
Então – ela pergunta – quem teria a sorte de trabalhar com isso?
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